A CULTURA SEM AR

A Economia Criativa passa por grandes problemas nesse momento. Completamente devastada. Se o Varejo e a indústria estão em maus lençóis, os setores da cultura sequer possuem cama.

O trabalhador do setor cultural e artístico brasileiro sobrevive há décadas por meio da informalidade com contratos eventuais a partir de patrocínios e editais públicos, também eventuais. Apesar de atuar essencialmente no Audiovisual e no Teatro, e da formação em Artes Plásticas, a experiência dos últimos 10 anos na área de Gestão da Cultura, e na Formação Artística e Cultural me proporciona um olhar mais assertivo diante do drama que estamos vivendo.

Não levarei em consideração nesse texto, o artesanato, a arte popular, circo e manifestações folclóricas entre outras atividades geracionais, até porque estes já passam por processo de extinção em nosso país, pelo menos quando falamos em promoção e difusão.

O financiamento dos que levam os saberes de geração em geração respiram por meio da sobrevivente “gourmetização” dos seus fazeres por meio de empresários envolvidos com um superlucro revendendo nas grandes cidades – superlucro dos empresários. Para os artesãos e artistas é apenas sobrevivência no mais baixo patamar. Algumas iniciativas pelo País não exigem tantos destes quando se trata de inscrições em Editais Públicos. Como por exemplo, a inscrição em alguns Estados ainda pode ser feita por escrito, o que já é um alento para o Circo, Folclore e Mestres de Bandas e Fanfarras.

O Audiovisual por sua vez é sempre citado como paralisado. Realmente ele está, é fato. O teatro está de joelhos, aguardando o tiro de misericórdia.  Desde o início do mandato do atual presidente,  a situação de terra arrasada cada vez foi piorando até chegarmos na Pandemia. Falando a verdade quando o Temer assumiu, a destruição começou. – Não quero entrar em polarizações, mas se olhar para os atos oficiais, é o que é. –

As maiorias das pequenas produtoras tentam desenvolver conteúdo a partir de investimento próprio ou pequenas migalhas do poder público.  Sobre as migalhas falo adiante.

A iniciativa privada e o patrocínio por meio de incentivo fiscal abastece o fomento à grandes produtoras, estas contratam na maioria das vezes os freelancers, que nada mais são que informais com nome em inglês. Essas empresas tem maior porte e se mantêm a partir das “estrelinhas” (uma produtora de audiovisual é pontuada de acordo com o registro de quantidade e tamanho de suas produções, essa pontuação é utilizada para que ela consiga recursos maiores) e também com o trabalho para as grandes agências de publicidade.

Penso sempre em dividir o audiovisual em dois setores, a Indústria e os que sobram. A indústria do audiovisual é a menor parcela e a que mais detém recursos.  Audiovisual é caro. Gasta-se muito para fazê-lo. Gasta-se muito para promove-lo. Gasta se muito inclusive para começar qualquer iniciativa na área. Os outros que sobram que é a grande maioria, pequenas produtoras, autônomos, ou freelancers se preferir o termo gringo, é uma casta de trabalhadores que se prostituem para as grandes produtoras mas que gastam seus cachês em suas produções individuais por meio muitas vezes por permuta, parcerias, escambo e colaborações. Assim nascem curtas, alguns documentários também de curta duração,  material para web etc.

Para os que não estão inseridos na indústria do audiovisual a realidade é terrível, os fotógrafos, técnicos, câmeras, captadores entre outras centenas de funções estão na fila do mísero auxílio oferecido pelo Governo Federal, que não paga as custas de viver numa grande cidade – onde essa indústria está -. Analisando friamente R$ 600,00 não é exatamente um alívio quando o salário mínimo é por volta de mil, para ninguém, de nenhuma profissão.

O audiovisual é quase sempre elitista e é uma arte dirigida pela elite e assim sendo não contrata quem não possui um equipamento caro e que não possa chegar rapidamente à uma locação em algum lugar rico da cidade, onde vivem a maioria dos diretores, onde são escolhidas a maioria das locações e onde estão a maioria dos estúdios. A terceirização dos serviços que derrubou o emprego em várias áreas, acontece na arte há muito tempo, só não enxergava quem tapava os olhos para a frágil realidade dos trabalhadores da cultura. Como o saudoso grupo de teatro, podemos todos ser chamados de fodidos privilegiados.

O audiovisual agoniza, porém ele detém (ou tinha – até porque, agora ninguém tem) grande parcela de recursos na maioria das instâncias de investimentos, por isso também ostenta a maior massa de desalentados que a paralisação do setor cultural deixa atônita sem saber o que vai acontecer após a pandemia. E ele tem mais, pois gera mais. Um produto da indústria é vendido para os serviços de streaming, entre um “reality” de comida e pílulas em comerciais é composta a programação obrigatória nacional na TV a cabo, por exemplo. A dicotomia que tento revelar é a do grupo de cinema do Caparaó – inventei a partir de um lugar que produz vídeos ambientais – que não venderá seu vídeo com temática ambiental para nenhum canal.

Era para ser um texto breve, mas está impossível.

E quem como eu trabalha no campo do texto, e dos que contam as histórias? Os autores e roteiristas. A maioria é informal. A maioria sequer trabalha efetivamente ou se dedica inteiramente na função, fica escrevendo de graça para ver se alguém o nota. Durante anos até começar, se alguém o ajudar, a colaborar. Apesar de antenado, com boa formação, fluente em línguas, esperto, hipster ou não, ele está olhando adiante se debatendo em linhas do Word tentando prover conteúdo no meio do nada e do pânico enquanto a sociedade assiste ao Mário Frias que nada sabe, se encontrar com artistas, pra dizer que nada vai mudar. A Cultura e a Produção Artística ( a Economia Criativa) estão sem alguém para lhe dar ânimo na luta.

O cinema sobreviverá. Pelo menos os grandes. A arte dos Grandes, o comércio dos grandes, a indústria dos grandes… Os Grandes sobreviverão, acho que é isso, em todos os setores econômicos. Sem mágoa. É assim numa lógica capitalista. É triste mas quando associamos e associávamos há mais de 20 anos a alcunha de “Economia Criativa” a um progresso, onde tentávamos gerar receita sem entender na base do que gerávamos, e sem entender a lógica escravocrata que participamos, não tínhamos a noção, talvez, de que não criamos uma economia, endossamos uma elite artística.  Não há direito trabalhista, não há segurança de trabalho, não há plano de saúde, não há PIS, não há FGTS, não há nenhum tipo de segurança social, aposentadoria… Temos apenas… Nada. Já podemos chorar? Em 1978 quando classe artística conseguiu a profissionalização legal era isso que esperávamos? Um Ministério da Cultura que não a promove? De maneira alguma?

Ou seja, onde quero chegar? Estamos trabalhando numa economia criativa, que não é sustentável, num setor onde a exploração foi a base de sua conquista e desenvolvimento. Num setor em que o “empreendedor” prevaleceu, é o triunfo liberal numa esfera que supostamente seria progressista. É de dar nó no cérebro.

De acordo com o SEBRAE, Economia criativa é o conjunto de negócios baseados no capital intelectual e cultural e na criatividade que gera valor econômico.

Acho lindo o conceito. Trabalho nele. A partir daí, nos encontramos completamente desamparados. E apesar de constarmos em letras pequenas de fundo preto no fim de uma obra, não temos direito a nada. Não há a tal sustentabilidade.

Também segundo o SEBRAE: …“a área criativa gerou uma riqueza de R$ 155,6 bilhões para a economia brasileira em 2015, segundo o “Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil” publicado pela Firjan em dezembro de 2016. Na ocasião, a participação do PIB Criativo estimado no PIB brasileiro foi de 2,64% em 2015, quando a Indústria Criativa era composta por 851,2 mil profissionais formais.”

E os informais? Quantos são, onde estão? O que fazem? Do que se alimentam?

Nos setores da cultura o desequilíbrio é bizarro. Quando falamos de Indústria Criativa eu penso, por exemplo, em Célio Arago, um descendente indígena talentosíssimo, autodidata que produz lindos objetos em madeira marchetada, que vive na seguinte distância de Manaus:  “12 horas de barco lento” , de “barco ligeiro são 4 horas”. Ele é vendido na Europa, ele faz parte da Indústria Criativa? Ele está “vendendo” para quem neste momento? O número citado aqui em cima é de quem contrata por CLT, ou seja, quantos do circuito abaixo estão fora desse número? Não se tem ideia na verdade.

E após a Pandemia?

Vamos partir do pressuposto que após a Pandemia, os eventos artísticos serão os últimos a conseguirem retornar a uma tentativa de normalidade. Todos os eventos artísticos para serem “economicamente viáveis” dependem de aglomeração.

Não havendo demanda. Como serão nosso projetos? Em Massachussets já se fala na volta do Drive-in, e na alteração da disposição dos assentos dos cinemas e teatros.

Os grandes eventos como shows, concertos, festas temáticas? Quando e como?

Os pequenos eventos? Necessários, pois se espalham gerando trabalho e renda pelas cidades. Quando e como? Do mesmo jeito?

Diz-se por aí que as medidas restritivas à circulação podem durar de um a dois anos, entre idas e vindas.

O setor cultural é e-n-o-r-m-e, absolutamente desigual, ele vai de um artesão de Manaus a um autor de telenovela, com o tipo de gestão no Ministério desde Janeiro de 2018, nossas expectativas são muito baixas. Estão nos asfixiando.

Vamos nos debater e nos hostilizar por quantas “meias dúzias” de editais sazonais ou pela moribunda e mutilada Lei Rouanet, agora e desde sempre com o nome verdadeiro de Lei Federal de Incentivo a Cultura? Aliás, não há aprovação de projetos novos há meses, e não há previsão da volta aos trabalhos.

A cultura está no escuro. Apagada como uma grande caixa preta vazia. Não há nenhuma ação para salvar a cultura brasileira das trevas. Alguns estados propuseram editais emergenciais em que os artistas poderiam apresentar qualquer projeto para web ou presencial após a pandemia, os valores totais nunca chegam a R$ 5.000,00. É algo. Mas não é suficiente, pois a agonia agora só transbordou um copo que já estava cheio.

Muitos, caso cheguem até aqui, me falarão que o importante agora é a Saúde. E eu concordo. E é saudável que os trabalhadores da Cultura comam. Se alimentem, possam ter um teto. E hoje a maioria corre risco de chegar, sem exagero, a miséria.

Mas e agora? Quem poderá nos defender?

Regina não era a pessoa mais adequada , o secretário de Hitler, ops, Roberto Alvim, -tampouco era. Mario Frias? What? Não temos. Enquanto esse Governo prosperar não haverá ninguém pela cultura em posição de tomada de decisão. É a deriva da Economia Criativa de um País.

É fato que o Estado nesse momento precisará ser maior do que pensavam os Chicago Boys e o Sr. Paulo Guedes. Estado Mínimo não combina com economias disfuncionais e deficitárias. Precisaremos de injeção de dinheiro. É necessário. Em todas as áreas da economia e incluindo na cultura. Precisaríamos que alguém no Poder Executivo entendesse que políticas Públicas  para o Circo, para o Audiovisual, para o Teatro, Dança, Artes Plásticas, Artesanato, Arte Popular, Folclore, Fanfarras, Bandas, Música, Humanidades, Literatura, HQs, Moda são necessárias e imprescindíveis para que realmente haja uma “Economia Criativa”. Seria o pretexto perfeito para que o Governo Federal liderasse uma intifada em direção a uma arte que num futuro tenha audiência e possibilidade de caminhar sozinha, que seja enfim sustentável. (Reitero que há setores que lutam somente contra a extinção.) Que ela se desenvolva por si, que Editais sejam pontapés e não sobrevivência de 100 profissionais por somente 3 meses. Seria o momento perfeito para criar uma organização e um modelo de Gestão Cultural Ativa, eloquente, facilitadora, difusora. Que pusesse de fato a Economia Criativa como um pilar gerador de oportunidades.

Todavia elegemos este presidente, que enxerga a cultura como inimiga. Com ajuda estratégica da demonização do que fazemos, por muitos dos que agora se dizem espantados pela ideologia do governo, ele foi eleito. Mas quem espalhará que a Lei Rouanet era o único instrumento possível a nível federal?

Além do meu emprego formal –fora da economia criativa -, estou escrevendo um argumento, uma série, três ou cinco peças, criando conteúdo para Web, ensaiando por vídeo conferência, para quando reabrirmos tentar apresentar, tentar divulgar, tentar alugar um teatro, tentar, tentar, tentar desesperadamente, para não enlouquecer, para a expressividade tomar forma, para comunicar, e supostamente para receber por isso.

E eu não sou artista da Gávea.

Leandro Bacellar é roteirista, ator e diretor de teatro e de cinema. Fundador do Grupo Teatro Empório.

@leandrobacellar

leandro@teatroemporio.com.br

15-08-2020

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *