“…é a partir da tragicidade e do mergulho no inconsciente (onde estariam os rejeitos do consciente) que o desespero, o êxtase, o retorno do recalcado fazem a negociação intensa entre real, simbólico e imaginário(ou o poético). A linguagem é usada para livrar os personagens do sentimento de culpa.”
NETO, Moisés
Uma das características centrais na dramaturgia de Nelson Rodrigues é o seu caráter provocador e revolucionário. A repetição de temas e personagens arquetípicos (que aparecem em vários momentos de sua obra) não lhe desmerece ou a torna menor, pelo contrário, lhe fortalece. Sua obra é revolucionária por ir além do seu tempo, quebrar convenções e dogmas arraigados, atacar instituições como a Igreja e a polícia, desvelar os podres da corrupção política e mesmo à sua revelia “transformar” o teatro careta e tradicional de então.
Beijo no Asfalto é emblemática quando se pensa na extensa obra de Nelson Rodrigues. Ela envolve elementos que se repetem nessa dramaturgia: o subúrbio e os seus paradigmas morais, a culpa, o adultério, a traição, o homossexualismo, a corrupção, os pequenos delitos, a privacidade, o sensacionalismo, os dramas e paixões familiares. Tudo isso é contado a partir do episódio de um homem moribundo, após um atropelamento, pedir um último beijo a um transeunte na rua. Após o beijo, que passaria incólume na agitação da cidade, um repórter e um delegado exploram o fato à exaustão visando seus interesses de promoção e ascensão social.
O personagem central (Arandir)é submetido a todo um processo de linchamento moral tendo a sua sexualidade questionada pela imprensa, polícia e, principalmente, família por ter beijado outro homem. O seu casamento fica abalado e sua vida vira um redemoinho. Os seus amigos se afastam, os seus parentes duvidam dele e até sua mulher questiona o seu ato. A imprensa, por sua vez, o trata como objeto de chacota junto com a polícia que abre uma investigação sobre os “reais motivos”de tal ação.
Essas referências são importantes para comentar a peça “Romantic”do Grupo Teatro Empório que se apresentou recentemente em Vitória. Ela conta a história de Léo, que retorna à sua casa, após ter cumprido dez anos de prisão condenado pelo assassinato de seu tio. Léo (Leandro Bacellar) tenta reestabelecer as relações com seus amigos e familiares, rompidas pela sua ausência e pelo seu crime. Com sua irmã, Irene (Letícia Iecker). Com Felipe (Raffael Araújo), seu cunhado e melhor amigo. Além de Karen (Marcela Büll), sua noiva na época em que fugiu, que torna-se garota de programa do prostíbulo do irmão, Ruivo (Ramon Alcântara). E Nanda, (Nívia Terra) a assistente de reabilitação social, que tenta ajudá-lo e protegê-lo de si mesmo.
Nesse painel, são desenvolvidas as tramas desse drama contemporâneo que trata da tentativa de ressocialização e de reabilitação individual e familiar de um ex-detento. Nele (embora o objeto de pesquisa do grupo ser confessadamente Shakespeare) transparece todo o universo de Nelson Rodrigues. O que não é nenhuma surpresa, vide desde as tragédias gregas esses temas são comuns na nossa civilização: amor, ódio, paixão, recalque, vingança, destino etc. Mas, o que se deve ressaltar(e esta é uma das características dessa dramaturgia ) é a concisão do texto, sua limpidez corrosiva, onde a palavra nunca é acessório, ou penduricalho de estilo. Os personagens , geralmente à margem da sociedade , passam por todo um processo de catarse coletiva da qual otimismo e esperança passam ao largo.
O personagem Léo (alter ego de Leandro?) sofre os mesmos problemas do Arandir de Nelson Rodrigues: o descrédito, a culpa, a intolerância da família e todo um calvário de problemas que pontuam o universo do subúrbio brasileiro .Ali é desenvolvida toda a trama que se reflete numa sociedade corrompida nos seus valores éticos. Como pode a sociedade integrar um ex-detento quando o preconceito começa na própria família? Como ele pode recuperar sua integridade e ter sua identidade (re)valorizada?
Esses valores e princípios são contados num ritmo intenso e provocativo, sem modelos e soluções fáceis onde cabe ao público preencher suas(nossas) lacunas. Vale ressaltar que esses temas percorrem a trajetória do Grupo Teatro Empório que, desde 2004, realizou espetáculos autorais transitando por vários gêneros e estilos. O GTE possui em seu currículo os espetáculos “Quase Famosos” (2004), “O amor em muito mais que preto e branco” (2006), “Boulevard 83” (2009), “Rosa Negra” (2010), “A Ordinária” (2011) e “Uma Carta para Alice” (2012). Reitera-se aqui a “angústia da influência” de que nos fala Harold Bloom, não por acaso, também , um dos maiores especialistas em Shakespeare.
Mas, depois de um período de estudos e formação no Rio de Janeiro, com algumas deserções e novas aquisições, o grupo consegue evoluir na construção de um trabalho de qualidade e de uma linguagem própria. O cenário limpo e adereços (caixas de papelão) com múltiplas funções criam soluções mais práticas e viáveis dando movimento às cenas. Ao contrário de uma das suas últimas montagens, onde o abrir e fechar de portas, apesar de ser numa solução cênica interessante, emperrava o movimento e a ação da montagem. O mesmo se repete na luz e figurinos que dialogam numa modernidade que dão unidade estética ao espetáculo.
Na interpretação, constata-se a evolução da atuação do protagonista (Leandro Bacellar) que dá credibilidade ao seu papel e o mesmo se pode dizer ao resto do elenco que, embora alterne tons mais dramáticos e empostados aos cômicos e mais naturalistas, consegue imprimir força e vigor ao espetáculo. Sua unidade na intensidade dramática se mantém constante mesmo quando contrasta com algum histrionismo pontual. Tal arranjo, funciona até na opção cênica da permanência do elenco sentado em bancos esperando para entrar em cena. Não há folga, nem fuga: Hércules carrega o mundo nas costas. Talvez aí, possa-se apontar a falta de mais poesia na trama em que é tecido o texto (vide o caos de Genet), que garantiria uma maior comunicação com o espectador.
Nada que desmereça seu brilho. “Romantic” se constitui num espetáculo intenso, com forte carga emocional, e uma elevação do patamar do grupo na sua busca de uma linguagem própria e original . Afinal, como fala o próprio Nelson “sem paixão não dá nem pra chupar um picolé”.
E isso, o grupo tem de sobra.